Vital Moreira, cabeça de lista do PS às eleiçoes europeias, desce a avenida, no sentido contrário ao da manifestação do Primeiro de Maio. Acabou de cumprimentar os dirigentes da CGTP e dirige-se ao Martim Moniz, acompanhado por Vitor Ramalho e Ana Gomes. Um grupo corre em direcção a ele. “Traidor! Cabrão!”, gritam.
Outros manifestantes aproximam-se, curiosos, apertando o grupo provocador contra a comitiva socialista. Há encontrões. Ana Gomes é empurrada, água é lançada sobre Vital. “Traíste o povo, filho da p. Avô Cantigas! Traidor! Traidor!” Aperta-se o cerco à volta do candidato, que quer responder aos manifestantes, sempre com um sorriso. Mas Vitor Ramalho puxa-o. “Ele é um provocador, não tinha nada que vir aqui”, comenta Jorge, que vem ao Primeiro de Maio como quem vai a Fátima.
Mas uma jovem vem lançada, a correr, aos gritos. Precipita-se sobre o grupo que cerca Vital Moreira. “Párem! Não façam isso! A democracia é de todos!”, brada Ana Rosa para os manifestantes que já estão em cima do socialista, numa embriaguês de violência. Todos se voltam, subitamente domados pela veemência da rapariga. Ana Rosa consegue chegar a Vital Moreira. “Quero pedir desculpa”.
A pequena multidão aguerrida dissipa-se. Vital Moreira segue o seu caminho e Ana Rosa afasta-se. “É isto que vai abrir os telejornais. Acabámos de perder a manifestação”. A profecia cumpriu-se. As palavras de ordem cederam lugar aos protestos contra a “intolerância”, o “sectarismo” ou a “instigação do ódio”.
Pedro tem 37 anos e a filha de dois às cavalitas. Não falhou quase nenhum Primeiro de Maio. Os mais difíceis foram os dois primeiros, ainda antes de 1974. Vinha com a mãe, que, no saco das fraldas trazia exemplares do jornal “Avante!” e no carrinho de bebé comunicados do MDP. Quando chegavam a um local mais escondido, Graça fingia aconchegar a manta da criança e... lançava ao ar um maço de panfletos.
Ana Rosa tem muitas profissões e em todas elas é precária. Bióloga, bailarina, massagista... Tudo a recibos verdes. Vem de uma família conservadora e rica, mas diz que já passou fome. Porque não se vende. Tem 33 anos, quer ser artista, activista e sexualmente livre. Está a desfilar com os Panteras Rosa, um grupo “contra a lesbigaytransfobia”.
Jorge tem 56 anos, trabalha na mesma empresa há 30, ganha 700 euros por mês e acha “importante” continuar a vir ao Primeiro de Maio. “É uma espécie de peregrinação a Fátima”, explica. Maria dos Anjos Gorena é Madre Superiora das Irmãs Oblatas. Desfila com um guarda-chuva vermelho, símbolo das prostitutas. Ela e outra freira, juntamente com sete prostitutas, desfilam também integradas nos Panteras Rosa. “Não conhecia este grupo. Mas são pessoas fabulosas, estes gays”, diz a Madre. “O importante é trabalharmos em conjunto”. Algo pouco comum na Igreja Católica... “Esqueça a Igreja Católica. Jesus se estivesse aqui, estaria a distribuir preservativos às prostitutas”. Bolas contra Sócrates..
A manifestação vai a subir a Avenida Almirante Reis, como um rio vagaroso à superfície, mas de remoinhos profundos, que desagua na Alameda Afonso Henriques.Um homem e uma mulher, da CGTP, estão em cima de um caixote de madeira a ditar as palavras de ordem, com um megafone. Os vários grupos profissionais vão obedecendo, à passagem. “Trabalho é um direito. Sem ele nada feito”. Gritam os slogans velhos: “CGTP. Unidade sindical”. E os os novos: “Sem pesca não há pão. Sesimbra tem razão”.
Camionetas forradas a cartazes tocam canções que não passam na rádio. De Zeca Afonso: “Ooouvem-se já os clamooores...” De Carlos Puebla: “E tu querida preseeencia, comandante Che Guevaaara”.Um cartaz: “Pela nacionalização da banca”. Outro, empunhado por um grupo de raparigas: “Somos mal empregadas”. Outro ainda: “Há água e cerveja”. E aquele ali, com as caras de José Sócrates e Durão Barroso e buracos nas respectivas bocas abertas: “Eles que engulam a crise!” Activistas oferecem bolas de trapos, para atirar aos cartazes.
Um grupo segura uma faixa da Frente anti-racista. “A luta continua. Governo para a rua”, grita um rapaz de 'dreadlocks’ rasta, calças a meio da nádega e t-shirt que diz “Angola”. Da secção do PS de Almirante Reis, o sr. Joaquim Domingos, 80 anos, porteiro-sem-salário da sede desde 1974, sorri à janela. Um pouco abaixo, Jerónimo de Sousa recebe beijos e abraços. “Ele era tão bonito quando era mais novo”, diz uma mulher enlevada.
Os dois “CGTPs” do megafone fazem o relato do encontro, em cima do caixote: “...e continuam a passar os representantes da freguesias da margem Sul, neste grande Primeiro de Maio...”
As sete prostitutas erguem os cartazes: “Prostituição: não ao preconceito. Sim à pessoa!” É a primeira vez que desfilam. Para a sua classe, é um momento histórico. “Deviam usar máscaras”, critica a Madre Superiora. “É preciso introduzir alguma criatividade nestas manifestações”.
“Com este governo andamos para trás”, gritam os precários do movimento Mayday. E marcham às arrecuas, depois correm para a frente.
Ana Rosa, loura, calças rasgadas e mochila, está a gritar: “País precário. Sai do Armário”. Muitos dos seus amigos já foram para o estrangeiro. Ela ficou, para ser activista. “Isso é o mais importante. Por ter actividade política, já andam espiões atrás de mim. Sim, porque a PIDE ainda existe.”
Pedro, que há 36 anos trazia panfletos clandestinos nas fraldas, tem agora quatro salários em atraso. “Vou-me despedir na segunda-feira”, revela em primeira mão. Ainda não comunicou à empresa. Porque continua a vir ao 1º de Maio? Porque “olhando para a História, vemos que não há direitos que tenham sido conquistadas sem luta. Pelo menos desde a Revolução Francesa.” E aqui? A luta pode tornar-se violenta? “Para já, acho que não, mas se as coisas piorarem...”
in http://ultimahora.publico.clix.pt
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